Via de regra, quando da aquisição de um imóvel na planta, nos contratos celebrados em face do consumidor, há a denominada cláusula de carência que, na grande maioria dos casos, corresponde a seis meses (180 dias).
Todavia, como se verá a seguir, tais cláusulas são ilegais à luz da relação consumerista que se estabelece.
Com efeito, antes de mais nada, urge consignar que a relação tratada inter partes obviamente enquadra-se numa verdadeira relação de consumo, nos moldes do disposto no Código de Defesa do Consumidor:
“Art. 2º: Consumidor é toda pessoa física ou jurídica, que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.”
“Art. 3º: Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.” (Grifo Nosso)
Outrossim, clarividente se tratar de um CONTRATO DE ADESÃO, eis que as cláusulas, muitas vezes extensas e em letras diminutas, já se encontram pré determinadas e sem qualquer possibilidade de alteração, consoante dispõe o Art. 54 do nosso Código de Defesa do Consumidor:
“Art. 54 - Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo."
Assentada mais esta premissa, tal imposição também afeta o denominado EQUILÍBRIO CONTRATUAL, eis que a Construtora utiliza-se de sua posição superior para impor, unilateralmente, suas vontades.
Neste jaez,
“Serão inválidas as disposições que ponham em desequilíbrio a equivalência entre as partes. Se o contrato situa o consumidor em situação inferior, com nítidas desvantagens, tal contrato poderá ter a sua validade judicialmente questionada, ou, em sendo possível, ter apenas a cláusula que fere o equilíbrio afastada”. (Felipe Peixoto Braga Netto, in Manual de Direito do Consumidor, Salvador: Edições Juspodivm, 2009)
Em síntese, se estabelece um verdadeiro DIREITO DE ATRASAR em favor da Construtora e, neste diapasão, perguntar-se-ia se igualmente haveria um DIREITO DE ATRASAR O CORRELATO PAGAMENTO? Obviamente a resposta será negativa.
Neste jaez, o Promotor de Justiça do Estado de São Paulo, Paulo Sérgio Cornacchioni, assenta que:
“Essa prática comercial da ré é abusiva e ilegal. (...)
Enfim, intolerável juridicamente que a ré deixe de estipular prazo certo e claro para o cumprimento de suas obrigações, notadamente a obrigação principal do contrato, consistente na entrega do imóvel ao adquirente. (...)
Comum se ouvir que o prazo de tolerância se deve à imprevisibilidade de ocorrências que podem comprometer o andamento das obras, como por exemplo intempéries, greves, escassez de insumos etc. Mas isso tudo faz parte do risco do empreendimento da ré e já é (ou deveria ser) por ela considerado na fixação do prazo de entrega. Daí porque tais intercorrências não aproveitam à ré para autorizá-la a descumprir o prazo anunciado. (...)
A ré, em seu contrato de adesão, ainda tem o desplante de estabelecer a exclusão dos efeitos da mora pela ocorrência (que chama indevidamente de “caso fortuito ou força maior”) (...).
A submissão de qualquer empresa à fislicalização da Administração Pública é obrigação e não força maior. Submeter-se à lei e ao poder de polícia do Estado não pode render à ré ou a qualquer fornecedor de consumo a exoneração de obrigações para com seus consumidores.(...)
O equilíbrio do contrato de adesão de compra e venda pressupõe a imposição de prazo para ambas as partes cumprirem suas respectivas obrigações, mediante instrumentos que documentem tais prazos, assim como a previsão de sanções, em desfavor das duas partes igualmente, para o caso de mora. Mercê de todo o exposto, o autor pleiteia a procedência desta ação civil pública, com o acolhimento dos seguintes pedidos:
Declaração de nulidade de toda cláusula dos contratos de consumo da ré que a exonere de qualquer forma de suas responsabilidades por eventual mora ou estabeleça em seu favor qualquer tipo de tolerância para a mora na entrega do imóvel (“entrega das chaves”), ou que por qualquer forma expurgue ou mitigue a incidência da multa moratória respectiva, sem que idêntico benefício, com mesma duração, esteja previsto para a mora do consumidor em relação a cada uma das prestações de sua responsabilidade. Condenação da ré à obrigação de não fazer consistente em doravante se abster, em todos os contratos de venda ou de promessa de venda de imóvel, de estipular cláusula que a exonere de qualquer forma de suas responsabilidades por eventual mora ou estabeleça em seu favor qualquer tipo de tolerância para a mora na entrega do imóvel (“entrega das chaves”), ou que por qualquer forma expurgue ou mitigue a incidência da multa moratória respectiva, sem que idêntico benefício, com mesma duração, seja previsto para a mora do consumidor em relação a cada uma das prestações de sua responsabilidade.(...)
Declaração de nulidade de toda cláusula dos contratos de adesão da ré que fixe multa para o descumprimento de suas obrigações em percentual e bases inferiores àquelas impostas ao consumidor, por colocá-lo em desvantagem exagerada, bem como por ser incompatível com a boa-fé e a eqüidade (Lei 8.078/90, art. 51, IV). (Ação Civil Pública N. 1001/2010)
Por derradeiro, reiterada jurisprudência é no sentido de que:
Direito Processual Civil - Promessa de Compra e Venda de imóvel - Atraso na entrega -Contrato que não disciplina sobre a prorrogação da entrega do imóvel - Caso fortuito e força maior não evidenciados - Fortuito interno decorrente da atividade e do risco do negócio - Atraso na entrega da obra que acarreta a aplicação da multa, tal qual prevista em contrato - Sentença mantida - Recurso improvido. (Processo: APL 9091474842009826 SP 9091474-84.2009.8.26.0000; Relator(a): Luiz Antonio Costa Julgamento: 25/04/2012 ; Órgão Julgador: 7ª Câmara de Direito Privado)
COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA AÇÃO PROPOSTA PELO PROMISSÁRIO COMPRADOR INADIMPLEMENTO CONTRATUAL DA PROMITENTE VENDEDORA IMÓVEL NÃO ENTREGUE NO PRAZO ACORDADO RESCISÃO CONTRATUAL CORRETA -RESPONSABILIDADE DA CONSTRUTORA PELO INADIMPLEMENTO CONTRATUAL ALEGAÇÃO DE CASO FORTUITO OU FORÇA MAIOR DESCABIMENTO ÔNUS DA CONTRUTORA DE FISCALIZAR SUA OBRA APLICAÇÃO DA MULTA CONTRATUAL PELO INADIMPLEMENTO NÃO CABIMENTO INADIMPLEMENTO ABSOLUTO POR PARTE DA CONSTRUTORA ATRASO DE MAIS DE ANO NA ENTREGA DO IMÓVEL - RESTITUIÇÃO INTEGRAL DOS VALORES PAGOS ADMISSIBILIDADE SENTENÇA MANTIDA RECURSO DESPROVIDO. (Processo: APL 383425820098260554 SP 0038342-58.2009.8.26.0554; Relator(a): Theodureto Camargo; Julgamento: 08/02/2012 ; Órgão Julgador: 8ª Câmara de Direito Privado)
Ademais, por muitas vezes as construtora têm por escopo usar de argumentos como o caso fortuito e a força maior, para se desincumbir da responsabilidade, com a alegação de que se tratam de situações imprevisíveis e inevitáveis. Contudo, a imprevisibilidade inexiste, pois de tão corriqueiro e habitual são os atrasos em obras, que caso fortuito e a força maior são regras, e a entrega no prazo, a exceção.